A Natureza Jurídica da Lei Complementar que regulamentou a Reforma Tributária
A reforma tributária foi concebida no cenário de coexistência do princípio unitário e do princípio federativo, encontrando-se veiculada no sistema do direito posto pela Emenda Constitucional n. 132/2023 – oriunda da Proposta de Emenda Constitucional n. 45/2019.
A partir de sua promulgação, implementou-se futura extinção das competências de cinco tributos (IPI, ICMS, ISS, Contribuição ao PIS/PASEP e COFINS), por meio da revogação do inciso IV do art. 153, do inciso II do art. 155, do inciso III do art. 156, e da alínea “b” do inciso I do art. 195, todos da Constituição Federal de 1988, para instauração das competências tributárias de outros dois tributos, denominados de Contribuição Social sobre Bens e Serviços (CBS) e Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). Ainda, foi acrescentado ao art. 154 da Constituição Federal o inciso III, atribuindo à União a competência para instituir impostos seletivos, com finalidade extrafiscal, destinados a desestimular o consumo de determinados bens, serviços ou direitos.
Foram significativas as alterações nas parcelas entre as prerrogativas legiferantes das quais são portadoras as pessoas políticas, consubstanciada na faculdade de legislar para a produção de normas jurídicas sobre tributos, bem como influiu na autonomia financeira dos Entes Políticos – em especial dos Estados-Membros e Municípios – prestigiada no pacto federativo constitucional, que também ficou comprometida.
Regulamentada pela Lei Complementar n.º 214, de 16 de janeiro de 2025, o imposto sobre bens e serviços é de competência compartilhada entre Estados, Distrito Federal e Municípios. De igual sorte, a mesma Lei Complementar instituiu a contribuição sobre bens e serviços, de competência da União, conforme dispõe o artigo 195, V da Constituição Federal.
O efetivo exercício das competências tributárias das pessoas políticas de direito público desenhadas na Constituição Federal, que consiste na “possibilidade de criar, in abstracto, tributos, descrevendo, legislativamente, suas hipóteses de incidência seus sujeitos ativos, seus sujeitos passivos, suas bases de cálculo e suas alíquotas”, ficou reservado à edição de único veículo introdutor, de índole complementar.
A Constituição Federal é o fundamento de validade das normas jurídicas do direito posto, e, assim, quaisquer diplomas normativos teriam o caráter de complementariedade ao implementarem os postulados fundamentais de nível constitucional. Entretanto, a doutrina não atribui tal conotação à lei complementar e, tampouco essa é a orientação decorrente de sua previsão no artigo 69, e das demais referências constantes da Constituição Federal.
Entendem os constitucionalistas que as leis complementares são aquelas necessárias ao complemento de dispositivos da Constituição Federal que não sejam autoaplicáveis, qualificando-as ontologicamente pela matéria inserida no seu conteúdo. Considerando a natureza jurídico-positiva, a lei complementar é aquela que, dispondo sobre matéria, expressa ou implicitamente, prevista na redação constitucional (pressuposto material ou ontológico), está submetida ao quórum qualificado do artigo 69, isto é, maioria absoluta nas duas Casas do Congresso Nacional (requisito formal).
Considerando os pressupostos apontados, a lei complementar possui dois traços identificadores: a) dispõe sobre matéria expressa ou implicitamente indicada na Constituição Federal; e b) o quórum especial previsto no artigo 69, que prescreve a maioria absoluta das Casas Legislativas. Ao primeiro traço denomina-se pressuposto material ou ontológico, ao passo que o segundo pressuposto se trata de requisito formal. Considerando tais premissas, afirma-se que a lei complementar se reveste de natureza ontológico-formal.
Existem porções privativas para atuação da lei complementar tributária cujo exemplo típico é o das limitações constitucionais ao poder de tributar, onde os campos de irradiação semântica são diferentes, não havendo que se falar em relação de hierarquia, tampouco em uma visão unitária sobre o tema da supremacia das leis complementares tributárias.
Destaca-se, ainda, que as normas gerais de direito tributário têm a função de organizar sintaticamente as proposições prescritivas em matéria tributária, estabelecendo a multiplicidade intensiva e extensiva das normas jurídicas. Visa, assim, dirimir as dúvidas no campo de incidência sobre o ente constitucionalmente autorizado a exigir tributos com relação a determinados fatos. A relação entre normas gerais de direito tributário e outras normas não se caracteriza como mera repartição de competência, mas sim a partir de um vínculo hierárquico. Todas as espécies tributárias estão sujeitas às normas gerais de direito tributário. Na esfera do direito tributário, a Constituição atribuiu à Lei Complementar, que institui norma de ordem total, uma competência material ampla e vaga. Há duas restrições fundamentais: a norma de ordem total não deve instituir tributos; não deve veicular isenções ou benefícios fiscais, salvo nos casos expressamente previstos pela Lei Maior.
Temos, portanto, que as normas gerais de direito tributário que dispõem sobre conflitos de competência visam a sedimentar interpretações dos signos constitucionais, impedindo que interpretações distintas gerem conflitos de competência. Tais normas devem eliminar possíveis intersecções que seriam decorrentes da interpretação diferentes (e possíveis) de textos constitucionais; ou podem criar essas interseções, quando não vedado pelo texto constitucional. Elementos que facilitam reconhecer uma norma geral de direito tributário é aquela norma que trata de tributos de União, Estados, Distrito Federal e Municípios, sem instituir qualquer desses tributos ou, ainda, lei complementar que trate de limitação constitucional ao poder de tributar ou norma que trate de crédito, obrigação, prescrição e decadência, sem vinculação a tributo específico.
No âmbito da chamada reforma tributária elegeu o legislador constitucional signos dotados de vagueza que lhe outorgam demasiada extensão de objetos que podem subsumir aos seus conceitos: bens e serviços. Dentro dos conjuntos de características constitucionais em torno desses conceitos, estabelece a Constituição Federal, em seu artigo 149-B que tanto o IBS quanto a CBS observarão as mesmas regras em relação a fatos geradores, bases de cálculo, hipóteses de não incidência e sujeitos passivos; imunidades; regimes específicos, diferenciados ou favorecidos de tributação; e regras de não cumulatividade e de creditamento. A exceção, quanto ao IBS, será em relação à fixação de alíquota própria, estabelecida por lei específica por cada ente federativo, conforme inciso V do artigo 156-A, da Constituição Federal.
Conclui-se, portanto, que a lei complementar instituidora da Contribuição sobre Bens e Serviços e do Imposto sobre Bens e Serviços ostenta natureza de norma geral em matéria tributária, eis que regulamentará, a partir dos conceitos constitucionais de bens e serviços, as materialidades comtempladas na Constituição Federal, de despeito de tratar de temas propriamente correlatos à feição específica dos critérios das respectivas regras matrizes dos tributos.